A meteórica trajetória da banda que levou o heavy metal à cidade do axé
O encontro
Um dia chegou à porta da nossa casa o carinha que era amigo do meu primo. Carregava uma guitarra “nua” – fora de qualquer case, embalagem ou bolsa – e uma caixa de som cinza, com cara de velha. Apesar de ser apenas um ano mais novo que eu, era de Pedro, três anos mais novo que ele, que Bernardo era amigo. É uma diferença considerável quando se está nas faixa dos 13 aos 17 anos.
Bernardo era conhecido pela sua habilidade no videogame. Mas depois de pegar numa guitarra pela primeira vez, os jogos eletrônicos seriam parte do passado. Eu e Pedro começávamos a descobrir o som do Iron Maiden e do Black Sabbath – pelo caminho mais improvável: o tio fã de MPB tinha, em meio a Chico Buarque e Novos Baianos, um ao vivo e um tributo aos ingleses do heavy metal (expressão que, até este texto, eu escrevia apenas com iniciais maiúsculas).
O futuro guitar hero de Porto Seguro queria tocar aquela stratocaster de marca desconhecida, mas não tinha em mente o som que queria fazer. Foi aí que eu e Pedro entramos na história. Eu havia rompido com o piano depois de oito anos me arrastando para aulas que ninguém me obrigava a fazer, mas que eu insistia em continuar. Até hoje não sei por que. Depois de arranhar um Raimundos no violão, eu queria a guitarra. E logo ela viria.
O baterista estava engatilhado, mesmo tendo pura e simplesmente uma convicção de que tocaria bateria muito facilmente porque conseguia fazer um ritmo “muito massa” batucando na geladeira. Ele até mostraria uma gravação, nada convincente, para comprovar.
Depois que ganhei a guitarra e comprei um amplificador – que carreguei em alguns ônibus entre Eunápolis e Porto Seguro – com o dinheiro da poupança, Xandão se fez baterista quando o pai comprou o instrumento do professor de bateria. Claro que, depois que tinha o principal, Xandão dispensaria as aulas.
Bernardo ia passar férias e feriados na casa da avó, em Vitória da Conquista, justamente quanto tínhamos mais tempo para ensaiar – ou ainda menos o que fazer. Mas estas viagens foram fudamentais para o sucesso da banda: tendo ainda mais tempo ocioso na árida cidade do sudoeste baiano, ele se dedicava integralmente ao estudo dos solos e riffs dos nossos dois únicos CDs de heavy metal – aqueles do meu tio. Graças a isso, a maior parte do nosso repertório viria de Real Live One, do Iron Maiden, e Nativity in Black: A Tribute to Black Sabbath.
Mesmo sem baixista e vocalista, nos considerávamos uma banda. E tivemos certeza de que não éramos ignorados pelo mundo quando tivemos nosso primeiro rito de passagem.
O estrelato
Um dia o pai de Xandão, nervoso com a simples possibilidade dos vizinhos reclamarem do barulho, desligou a chave de eletricidade do nosso “estúdio”: o quarto de um apartamento sobre a casa, onde tentávamos isolar o som cercados por uma parede de colchões.
No dia seguinte, nos mudamos – com amplificadores, pratos, cordas enferrujadas e equipamentos emprestados – para a casa de Bernardo. Quando tocava o telefone ou alguém nos chamava no portão, a outra avó do nosso guitar hero batia com o cabo da vassoura sob nosso chão. Só assim para ouvirmos alguma coisa em meio àquela maçaroca sonora de guitarras distorcidas e bateria.
A maçaroca, porém, começava a ficar redonda e a gerar comentários. Logo a banda de grunge local, que até então não nos levava muito a sério, começou a dar umas passadinhas nos ensaios. O mesmo aconteceu com um monte de gente que eu não conhecia, mas que entrava no quartinho quente e apertado pelo simples fato de conhecer alguém que conhecia Bernardo. Algumas vezes, porém, ninguém da banda sabia de onde vinha o visitante.
Depois de inúmeras audições de vocalistas – nenhum sabia nada de heavy metal, claro – resolvemos reconsiderar o teste de um deles. João Paulo era colega de classe de Bernardo e tinha gosto musical ignorado. Mas um dia achamos que ele conseguiu cantar todas as músicas muito bem. E ele foi admitido.
Os baixistas se revezariam – Patrick, baterista da banda grunge local, ficou impressionado quando conseguiu tirar uns trocados na primeira participação que fez conosco, tocando baixo, numa pizzaria em Arraial D’Ajuda. De todas as vezes que havia tocado com sua banda, não tinha ganho um tostão.
Em se tratando de Porto Seguro, é lógico que, na maioria das vezes, praticamente pagamos para tocar. Nossa recompensa vinha em forma de coros quando tocávamos Fear of the dark, em rodas de “bate-cabeça” quando Xandão batia rápido na caixa em Be quick or be dead, e em apertos de mão no final do show, quando um desconhecido praticamente agradecia por tocarmos heavy metal em pleno sul da Bahia. Havia algumas groupies também, mas a maioria ficava com o vocalista.
O auge
Contávamos com uma equipe de apoio sem precedentes. Tínhamos uma Ford Explorer ou uma Chevrolet S-10 para levar o equipamento – dependendo de qual dos dois irmãos de Xandão dirigisse. E sempre havia um braço amigo para ajudar a carregar amplificadores e guitarras.
Um dia fomos tocar no espaço alternativo de uma das baladas da cidade. Na preparação do local – que estava sujo e fedia a xixi –, à tarde, resolvemos abrir uma porta lateral para arejar o ambiente. Qual não foi nossa surpresa quando dois rottweilers gigantes saíram por ali e começaram a latir para nós. Pânico. O irmão de Xandão, de cima duma caixa, tentava domar os bichos:
“Satã! Entra Satã!”
“Como você sabe o nome dele?”
“Sei lá, um bichão desse deve ter um nome assim…”
Consegui sair de fininho para avisar um funcionário da casa sobre os cachorros. Quando soube que estavam soltos, o homem arregalou os olhos, se pôs a correr e a avisar os colegas, que fizeram o mesmo. Quando a notícia chegou a um dos donos, ele pôs os monstros, do tamanho de bezerros, para dentro – com apenas um grito.
À noite, show memorável. A enorme quantidade de pessoas que pusemos para dentro de graça teria sido uma ótima desculpa para nosso contratante não nos pagar – isso se tivéssemos conseguido falar com ele depois. Pelo menos metade dos que viram nosso espetáculo não pagou para entrar.
O absurdo chegou ao ponto de, quando dissemos que um amigo pagodeiro era o baixista da banda, o segurança disse: “Porra, mas quantos baixistas tem essa banda? Já entraram uns três!” Nem Ray Charles & The Count Basie Orchestra teria tantos músicos.
O legado
Ao contrário das outras grandes bandas de rock, a nossa não terminou tragicamente, nem por causa de brigas. Nós simplesmente crescemos. O Teratos (lê-se Tératos) – nome surgido numa aula de geografia – foi uma revolução pessoal de garotos que não suportavam o esterótipo de uma cidade. Que queriam uma opção de lazer não relacionada ao entretenimento para turistas.
Ninguém era cabeludo nem tatuado, ninguém falava inglês (a não ser Bernardo, que naquele ano pulou todos os níveis do curso e começou a bolar letras medievais), mas todos queriam se afirmar de alguma forma. Me toquei que, se algo que gostava tanto ainda não me preenchia, eu tinha mesmo era de sair dali. Vim fazer minha faculdade e aqui me encontrei.
Quando voltei, de férias, Pedro tinha sua própria banda de heavy metal. Ele era cabeludo e só usava roupa preta. Um monte de adolescentes que eu não conhecia ouvira falar do Tératos e do gênio endiabrado da guitarra, Bernardo – que estava pegando todas as menininhas. Havia a chamada “galera do rock”. Claro, não era feita de fãs do Teratos, mas eu sentia uma pontinha de orgulho por tudo aquilo.
Bernardo chegou a dizer que tinha parado de tocar guitarra: hoje se dedica a programação de computadores e mora em Recife, com a namorada. Porém, um vídeo enviado pelo próprio para Kinho, nosso último baixista, meio que em segredo, mostra o guitar hero baiano fritando as cordas ainda mais rápido do que antes.
Xandão continua em Porto Seguro, ainda buscando seu caminho. Eu estou aqui, fazendo o que eu acho que sei fazer melhor do que tocar minha guitarra – que acabei vendendo por uma ninharia e nunca mais voltei a cogitar. Meu instrumento agora é o teclado. Do computador. E sou mais feliz do que um rock star.